quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O velho que lia romances de amor


"-É verdade que sabes ler, compadre?

- Alguma coisa.

- E que estás a ler?

- Um romance. Mas cala-te. Se falas a chama mexe-se e mexem-se-me as letras. O outro afastou-se para não estorvar, mas era tal a atenção que o Velho prestava ao livro que não suportou ficar à margem.
- De que é que trata?
- Do amor.
Perante a resposta do velho, o outro aproximou-se com renovado interesse.
- Não me lixes. Com fêmeas ricas, das que fervem?O Velho fechou o livro num repente fazendo tremer a chama do candeeiro.
- Não.Trata-se do outro amor. Do que dói."


Luis Sepúlveda

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Leite Derramado


"É O TAL NEGÓCIO, me arrancam da cama, me passam para a maca, ninguém quer saber dos meus incômodos. Nem bem acordei, não me escovaram os dentes, estou com a cara amassada e a barba por fazer, e com este péssimo aspecto me fazem desfilar sob a luz fria do corredor que é um verdadeiro purgatório, com um monte de gente estropiada pelo chão, fora os vagabundos que vêm ali a fim de ver desgraça. Por isso puxo o lençol e cubro meu outrora belo rosto, que logo tornam a expor para não parecer que estou morto, porque causa má impressão, ou é vexatório para maqueiro transportar defunto. Depois tem o elevador, onde todos olham sem cerimônia para a minha cara, em vez de olhar para o chão, o tecto, o mostrador de andares, porque também não custa nada olhar para o traste".
Chico Buarque

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Uma longa viagem com António Lobo Antunes


É disto que se trata, uma longa viagem espiritual. Foi o que senti, quando li este livro, em forma de entrevista. António Lobo Antunes mostra-se, quase nu, sem pudor em se afirmar como pessoa.
António Lobo Antunes é de uma dignidade transcendente, não teve receio em se mostrar tal como é, e ao fazê-lo provocou-me um sentimento inexplicável de vergonha, porque afinal de contas aquele Homem que há muito coloquei num pedestal, está a despir-se para os leitores, e eu, ao lê-lo achei que não merecia.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Amantes e Inimigos


Rosa Montero escritora espanhola, escreve de forma bastante própria sendo fácil aos seus leitores detectar o seu estilo literário.

Amantes e Inimigos é um conjunto de contos interessantíssimos, onde é visível o seu refinado sentido de humor.


Sobre a fealdade:


"Escolhemos o próximo como quem escolhe um cabide, e nele penduramos o invento dos nossos sonhos. E dá-se o maldito caso de que as pessoas tendem sempre a procurar cabides bonitos. Dá-se o reles caso de que se intui sempre um interior emocionante nas meninas bonitas, por muito néscias que sejam. Ao passo que ninguém se dá ao trabalho de supor uma alma bela numa mulher franzina, cabeçuda com olhos separados. Por vezes, esta certeza que acompanha a fealdade arde como uma ferida aberta: não é que não me vejam, é que não me imaginavam"

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Casa Dos Espíritos, Isabel Allende




A primeira edição de "A casa dos Espiritos" saiu à venda em 1982, e catapultou Isabel Allende de uma maneira espetacular à fama. Esta foi a sua primeira obra.

O relato transporta-nos à história do Chile e conta-nos as aventuras e desventuras, amores e ódios, crenças e diferenças políticas de três gerações diferentes da família Trueba. Para além de abordar diferentes visões políticas, aborda também temas bastante controversos da altura e que ainda hoje despertam interesse.

As personagens são profundas e criativas, descritas pela escritora com um toque anedótico e ao mesmo tempo focando rasgos menos bons destas, mas que sem eles seria impossível transmitir o sentimento da época.

O relato em si é envolvente e cativante desde a primeira página. Isabel escreve de uma maneira muito fluida e com a pontada de sarcasmo característico dos Sul-Americanos.
Diferentes aventuras e muitas emoções, guerras pessoais e a guerra civil preencherão a sua leitura, e não poderá largar o livro até à última página. Eu pessoalmente, adorei. Desfrute!!

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Livros




Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.


Os livros são objectos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:


Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.


Caetano Veloso

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Click
Imagina que podemos controlar a vida através de um comando remoto universal.Tudo começa quando Michael se apercebe dos vários comandos existentes em casa para desempenhar uma função distinta, ou seja, um comando para a televisão, um para a agaragem , outro para o ventilador, para o carrinho de brinquedo.Atrapalhado com tantos botões e vendo a facilidade dos filhos de manusear e distinguir tantos, sai para uma loja de conveniência à procura de um comando universal.Percebo nesse filme o quanto estamos atrelados ás tecnologias, utilizando-as de maneira útil ou não.O filme é um sonho vivido pelo personagem.O mesmo ao possuir algo que poderia utilizar para controlar a sua própria vida , os seus familiares, amigos e até o cão, ficou extremamente feliz.Ele podia fazer tudo, fazer parar as pessoas, diminuir o volume da voz,adiantar os acontecimentos. Para resumir e não contar tudo, chega um momento que ele percebe que o importante é viver cada fase da vida, aceitar as situações chatas, conviver com as diferenças entre os familiares e colegas e que apesar de vivermos uma vida agitada sem tempo para os bons momentos, o que na realidade vale a pena, é viver o agora,o hoje, disfrutar de cada minuto com as pessoas que amamos.Até logo!!!
O mundo inteiro está cheio de pessoas. Há pessoas caladas que precisam de alguém para conversar. Há pessoas tristes que precisam de alguém que as conforte. Há pessoas tímidas que precisam de alguém que as ajude vencer a timidez. Há pessoas sozinhas que precisam de alguém para brincar. Há pessoas com medo que precisam de alguém para lhes dar a mão. Há pessoas fortes que precisam de alguém que as faça pensar na melhor maneira de usarem a sua força. Há pessoas habilidosas que precisam de alguém para ajudar a descobrir a melhor maneira de usarem a sua habilidade. Há pessoas que julgam que não sabem fazer nada e precisam de alguém que as ajude a descobrir o quanto sabem fazer. Há pessoas apressadas que precisam de alguém para lhes mostrar tudo o que não tem tempo para ver. Há pessoas impulsivas que precisam de alguém que as ajude a não magoar os outros. Há pessoas que se sentem de fora e precisam de alguém que lhes mostre o caminho de entrada. Há pessoas que dizem que não servem para nada e precisam de alguém que as ajude a descobrir como são importantes. Precisam de alguém Talvez de nós ... (Leif Kristiansson)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Alguns estados da luz


















El Soplón (El Greco)

Egoísta não é, esta revista. Com grande pena minha, nesta biblioteca existem apenas meia dúzia de exemplares. Além do cuidado na escolha de textos e imagem, um papel excelente. Adoro estes papéis tão agradáveis ao toque, apetece folheá-los. A minha preferida é a número 18, de Março de 2004, dedicada à Luz. Mais luz, toda a matéria é combustível, meninos de luz, luzia e este texto de António Mega Ferreira.


«Vou supor que estão familiarizados com as propriedades da luz em circunstâncias do dia-a-dia, tais como: a luz viaja em linha recta; desvia-se quando entra na água; quando é reflectida por uma superfície como um espelho, o ângulo sob o qual a luz atinge a superfície é igual ao ângulo sob o qual a deixa; pode ser separada em cores; vêem-se cores lindas numa poça de lama quando esta tem um pouco de óleo; uma lente foca a luz; etc. Servir-me-ei destes fenómenos a que estão habituados para ilustrar o verdadeiro comportamento estranho da luz...»

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Then sing, ye Birds, sing, sing a joyous song!
And let the young Lambs bound
As to the tabor's sound!
We in thought will join your throng,
Ye that pipe and ye that play,
Ye that through your hearts to-day
Feel the gladness of the May!
What though the radiance which was once so bright
Be now for ever taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.


Intimations of Immortality From Recollections of Erly Childhood, de William Wordsworth

É diferente. E depois?



António Orlando Rodríguez, através da sua escrita desmistifica a diferença, quando no seu romance «Chiquita», empreendeu a tarefa de escrever a história verdadeira de Espiridiona Cenda, uma liliputiana atrevida com a vida, uma sedutora, que se tornou numa celebridade dos teatros de vaudeville.

«Ela é muito...demasiado...pequenina - apressou-se a responder Minga, ao reparar que a sua patroa perdera novamente a fala.
O negro Congo deu uma gargalhada e retorquiu que no mundo, para que fosse mundo, tinha de haver de tudo: pessoas grandes, pessoas pequeninas e pessoas ainda mais pequeninas...»

terça-feira, 7 de julho de 2009

Sobre a interpretação

Ao debruçarmo-nos sobre o visível podemos recolher a imagem que nos foi exposta na palavra de outrem. No entanto, a análise da imagem é subjectiva e distinta! A adaptação interpretativa apenas se processa pela pertença a uma comunidade linguístico-cultural ou pela inferência resultante das premissas anteriormente conhecidas durante o processo de comunicação. Na escrita é relativamente fácil recordarmo-nos de um livro que começamos a ler e que pela dificuldade de reconhecimento do implícito, perdemos a vontade de ler. Essa é uma característica que o leitor deve ultrapassar pela vontade de conhecer, pois as inferências que vai fazendo ao longo do texto serão importantes para a compreensão do início do livro. Alguns autores chamam-lhes pontos de referência, que nos colocam na vivência dos personagens e no estilo da narrativa.

A interpretação que se faz de um texto dá-nos a noção de conhecermos algo de novo que é difícil de partilhar por ser tão próprio, tão… secreto. E quando se fala sobre essa vivência “percebe-se que todas as bibliotecas íntimas têm uma zona de intersecção. Então é outra coisa: é o amor que nasce da leitura. Amo-te, gostamos dos mesmos livros, gostamos um do outro no livro” (Barthes e Mauriés, em Enciclopédia Eunaudi).

A vida é um assimilar de experiências…

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Um tesouro


















Recebi há alguns anos este livro, que tenho vindo a reler recentemente com muita frequência. Foi-me oferecido em circunstâncias muito especiais e cada vez mais me convenço que os livros, bem como as outras coisas, vêm ter connosco.
O Estúdio de Alberto Giacometti de Jean Genet foi reeditado em 1999 pela Assírio e Alvim e é o número 3 numa colecção que se chama Alfinete. Muito apropriado. Os mais saudosos ficarão contentes quando, ao abrir o livro encontrarem as palavras de Al Berto. Outras palavras ainda: solidão das coisas, ferida original, refúgio dos seres, movimento, esqueleto, nudez dos objectos.


«Tive medo quando bruscamente apareceu Osíris – o nicho cortado à face, rente à parede – sob luz verde. E foram os meus olhos os primeiros a aperceber-se? Não. Antes tinham sido ombros e a nuca, esmagada por uma mão, ou massa , obrigando-me ao mergulho dos milénios egípcios, a curvar-me mentalmente, e até encolher-me, diante dessa pequena estátua com sorriso e olhar severos. Estava ali um deus. O deus do inexorável. (Claro que me refiro à estátua de Osíris em pé, na cripta do Louvre.) Tive medo porque sem sombra de dúvida tinha ali um deus. Certas estátuas de Giacometti provocam em mim emoções muito próximas deste terror, e idêntico fascínio.
Mas despertam um curioso sentimento: são-me familiares, cruzam-se comigo na rua. Ora elas vêm do fim dos tempos, do princípio de tudo, e não cessam de vir ou recuar com soberana imobilidade. Se os meus olhos tentam aprisioná-las, aproximar-se, elas – sem fúria nem cólera nem ira, apenas pela distância entre nós, que eu ainda não notara, de tal modo reduzida e escassa, a ponto de as julgar ali mesmo – afastam-se a perder de vista: desdobra-se subitamente a distância. Para onde vão? Embora a sua imagem continue visível, onde estão elas?»

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Aroma a Brasil



Aquarela, de Toquinho.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Indubitavelmente Borges


«Continuo a fazer de contas que não sou cego, continuo a comprar livros, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tal volumes, escritos numa letra gótica que sou incapaz de ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, todavia, o livro estava ali. Senti como que a gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens».

Excerto retirado do livro "Borges Oral", que faz parte de um texto inserido numa colectânea de conferências proferidas na Universidade de Belgrano. Borges e Nabokov, ensinaram literatura na universidade e faziam-no com espirito de devoção e entrega porque a vida deles era a literatura. Tenho impressão, que os alunos eram meros ecos das suas palavras, e que o diálogo dentro das aulas era feito entre os escritores e as obras que seleccionavam .

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Nesta terra aprendi a gostar de cerejas









Terra Quente o Fim do Milénio: se folhearmos este livro vemos:

Gestos do quotidiano. Carneiros, galinhas, perdizes, cerejas. Naturezas mortas. A expressão natureza morta não é muito feliz, a natureza fala connosco.

Mulheres que depenam galinhas com a mesma naturalidade com que penteiam meninas, a ferocidade e a ternura aliam-se na obra de Graça Morais.

Anjos preparam-se para desfilar na procissão, alguém lhes preparou os cabelos. Aquele carvão sobre papel, serão mesmo dois, ou é apenas um anjo que se vê de perfil?

Uma mulher descasca uma batata enquanto a criança é engolida por um urso.










Aquela mulher, que nos observa de costas, olha-nos como se o fizesse de frente. Olhos nos nossos olhos. O gancho deixou cair alguns cabelos, estava concentrada noutra coisa.

Este livro é um estudo da formação do mundo. Pintura, desenho, excertos dos seus diários, acompanhados pelo texto de António Carlos Carvalho e fotografias de Roberto Santandreu.

Um cartão de visita da Terra Quente.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

E agora, Sofia? Onde está a linha?



A Sofia é uma pessoa que me lembra vagamente alguém que já conheci.

Aquela leitora quase tímida, quase adolescente, quase com medo de existir, pode agora receber o adjectivo aventureira.

A Sofia saiu do ninho e está finalmente onde queria estar. Vai deixar saudades.


«Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? - pergunta Kublai Kan.
- A ponte não é sustida por esta ou aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
Polo responde: - Sem pedras não há o arco.»

As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino


Grande Reportagem

Tenho saudades do jornalismo de investigação, actualmente quase não se faz. Tenho nostalgia do tempo em que comprava a Grande Reportagem do Miguel Sousa Tavares, sim porque há a Grande Reportagem do pós Miguel Sousa Tavares, que deixou de ser a minha Grande Reportagem.
Comprava-a religiosamente, sempre que saia, às Sextas – Feiras, e não era uma publicação barata (nem o podia ser). Fazia parte do meu ritual hedonista, sentar-me no Dom Pedro, um café no Porto, ao pé de casa, e folheava-a do princípio ao fim sem saltar páginas sorvendo-a gulosamente como fazem os apreciadores do bom café.
Tenho saudades de aprender muito, com o jornalismo de investigação, que teimou em debandar, e que estranhamente passou a ser o jornalismo dos crimes, da pedofilia do “antes e depois”.
Há dias numa viagem, relembrei a Grande Reportagem, através de um documentário que passava na TSF, sobre a extinção da baleia branca no Canadá, e senti de repente o mesmo entusiasmo, que agora me leva sempre que é possível, a sintonizar a TSF.
No entanto, não existe prazer comparável ao de folhear, mandando no nosso tempo, a informação em suporte papel.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Ecologia e Ideologia

Terminei hoje a leitura de um livro, "Ecologia e Ideologia", da colecção Mesa Redonda, da editora Livros e Leituras. Com este livro alarguei um pouco os meus horizontes, graças à generosa contribuição de Domingos Moura, Francisco Ferreira, Francisco Nunes Correia, Gonçalo Ribeiro Telles e Viriato Soromenho-Marques. Mais que considerações pessoais acerca de uma das maiores preocupações da nossa era deixo uma passagem de Nunes Correia, na forma de conclusão:" Julgo ser sempre necessário falar de ideologia com um grande sentido de responsabilidade. As ideologias salvam e redimem, mas as ideologias também oprimem e destroem. As ideologias procuram sempre mudar o mundo, para o melhor ou para o pior, mas acabam sempre por gerar algo distinto daquilo que se propõem. Em rigor não mudam o mundo, apenas justificam ou caucionam todas as mudanças no mundo.
É proverbial falar-se da crise das ideologias nas sociedades contemporâneas. Crise de valores, talvez fosse preferível chamar-lhe. E essa crise abre um vazio que tende a ser preenchido pelas formas mais espúrias de messianismo redentor, nas suas facetas mais bucólicas ou mais belicistas. A síndrome do milénio gera inquietações e angústias. Julgo que a ecologia é importante demais, e devia ser racional demais, para preencher esse lugar mítico de uma qualquer redenção salvífica.
A crise das ideologias tem provavelmente de se resolver com outras ideologias. E as novas ideologias, nas sociedades contemporâneas, têm necessáriamente de assimilar importantes valores ecológicos. Mas a ecologia não pode substituir-se à ideologia ou erigir-se em seu sucedâneo. A ecologia é, decerto uma componente importante da relação das sociedades humanas contemporâneas entre si e com o mundo que as rodeia, mas não é definitivamente a totalidade dessa relação nem o seu princípio organizador.
Incansavelmente temos de construir sociedades mais democráticas, mais participativas, mais responsáveis. Sociedades sempre imperfeitas porque são humanas e, porque são humanas, sempre em aperfeiçoamento. Incansavelmente temos de contrariar a subjugação a uma qualquer "ordem natural" , conceito afim de subjugação a uma qualquer "ordem superior" que corre o risco de se transformar rapidamente em subjugação à "superioridade de uma ordem".
Para os crentes a única ordem superior que merece reconhecimento é a divina. E essa devolveu ao homem (sua imagem e semelhança!) a liberdade de traçar o seu destino. Para os não crentes a única ordem superior que deve ser obedecida é a infindável tarefa de tornar as sociedades humanas mais justas e mais felizes.
Penso, assim, que inscrever a ecologia no lugar da política ou da ideologia é desaconselhável e mesmo perigoso. Antes é preciso conduzir a política ao lugar da ecologia."(.....)

terça-feira, 16 de junho de 2009

A Chuva Pasmada






Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.

Conselho do Avô

Encontrado na primeira página do livro A Chuva Pasmada, de Mia Couto

terça-feira, 9 de junho de 2009

Oblio

De Harry Nilsson, The Point

sábado, 6 de junho de 2009

Livros da Infância

Será que "o melhor do mundo são as crianças" é o lugar comum mais verdadeiro, capaz de tocar intimamente o mais cínico dos homens?
A mim parece-me que pelo menos aos olhos da razão, que as crianças são pedras cujo tratamento que lhes damos tem uma certa influência nos adultos em que se transformam.
Neste mundo complexo, pais e educadores, não podem controlar toda a informação que chega às nossas crianças, e que também as forma. Salva-nos o olhar atento de quem, com ternura, tenta indicar aos pequenitos, o caminho mais seguro para a tranquilidade do seu espírito.
Hoje em dia, a oferta de livros infantis, é muito vasta e completa, no sentido de proporcionarem conhecimento, entretenimento e sonho aos mais novos.
Recordo aqui eu também os livros que povoaram a minha infância, como a "Anita", " As histórias do Avôzinho", "Carlota", os livros da Condessa de Ségur, não esquecendo os "Patinhas".
Que saudades de ser criança.... Beijinhos a todos.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Ornamentos

O uso da palavra é uma arte, a arte do sonho, do sentimento, da emoção, da reconciliação… uma arte relegada para o romântico pela exaltação das emoções, pelo engano dos sentidos que promove uma onda inebriante e leva as massas a um êxtase ilusório... a formatação do sentir é por vezes tão forte que nos nega a interpretação acreditada nos próprios sentidos. E não será a procura da razão que peja os nossos sentidos e nos faz navegar num vazio temeroso na procura da inteligibilidade o que nos ludibria?

Ao lugar do “poético” apenas a ficção, e por isso leio, cavalgando numa odisseia quixotesca ou num qualquer mundo de Alice e estudo as razões da ausência desse lugar, que apesar da brisa de um vulto elegante, está ainda afastado da realidade vivencial. Pelo menos traria consigo o conceito de belo, de etéreo… a poesia, num dos conhecidos sonetos de Luís de Camões.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

muda-se o ser, muda-se a confiança;

todo mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades.

 

Continuamente vemos novidades,

diferentes em tudo da esperança;

do mal ficam as mágoas da lembrança,

e do bem (se algum houve), as saudades.

 

O tempo cobre o chão de verde manto,

que já coberto foi de neve fria,

e, emfim, converte em choro o doce canto.

 

E, afora este mudar-se cada dia,

outra mudança faz de mor espanto,

que não muda já como soía*.    

 

* usualmente

          Luís Vaz de Camões (1595 pm)

A sociedade evolui, o sentimento é perene…

La Biblioteca de Babel


"Como todos los hombres de la biblioteca, he viajado em mi juventude; he peregrinado em busca de um libro, acaso del catálogo de catálogos; ahora que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me preparo a morrir unas pocas leguas del hexógeno em que nasci. Muerto no faltarán manos piedosas que me tiren por la baranda; mi sepultura será el are insondable: mi corpo se hundirá largamente y se corroperá y disolverá en la viento engendrado por caida, que es infinita..."(Jorge Luis Borges)

O universo de Borges sempre tão inacessível e tão apaixonante, tão longínquo e infinito, tão distante de nós, tão perto da vida.
Alberto Manguel, foi um dos muitos jovens, que leram em voz alta para Borges, sem se estabelecer uma forte relação pessoal: "Eu descobria um texto lendo-o em voz alta, enquanto Borges usava os ouvidos como outros leitores usavam os olhos para esquadrinhar uma página à procura de uma palavra, de uma frase, de um parágrafo que confirmassem um registo da memória. Durante a leitura, interrompia-me, fazendo comentários ao texto a fim de (penso eu) tomar notas mentais."
Segundo Manguel, mesmo que não significasse nada mais que um veículo de informação para Borges, sentia que o universo do escritor abafaria qualquer sentimento contraditório: "Eu sentia que era o único proprietário de uma edição cuidadosamente anotada, compilada para meu benefício exclusivo. Evidentemente que não o era; eu (como muitos outros) era apenas o seu caderno de apontamentos, um aide-mémoire de que o escritor cego necessitava para organizar as suas memórias".

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Dia de Pentecostes

Poesia de Herberto Hélder para celebrar Pentecostes, o dia em que todos os homens se entendem.


Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida
, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez

de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.

Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.


Somente sei que minha vida estremeceria, que

os braços sonâmbulos

iriam para o alto e queimariam a ligeira

noite de Junho, ou que o meu

coração ficaria profundamente louco. E nessa

loucura

cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,

e cada nome seria iluminado

por todos os outros nomes da terra, e tudo

arderia num só fogo, entre o espaço violento

do mês de primavera e a terra

baixa e magnífica.




Herberto Helder
A Colher na Boca



domingo, 31 de maio de 2009

Espinosa

Há já algum tempo que a minha curiosidade pedia que visse qualquer coisa de Espinosa.
Este filósofo judeu, cuja familia era oriunda de Vidigueira, era sucessivamente apontado como uma referência mundial na filosofia, e não apenas pelo nosso estranho patriotismo.
E assim, eu, que por acaso nem tenho um especial gosto pela filosofia(ou a memória do liceu mo garantia), dei comigo a ler com gosto um livrinho da colecção Cadernos Culturais, dedicado a este filósofo, da autoria de E. Chartier.
A cada passo tropeçava num pensamento e pensava "isto é importante", e agora, que terminei este livrinho, ficou aquela sensação que me fica muitas vezes, de que deixei perder muito do que li, ou seja, a filosofia de Espinosa merece um olhar mais atento, mais lento, para que a informação não seja apenas informação, mas se entranhe em conhecimento.
Deixo-vos algumas linhas para aguçar o apetite. Garanto que a leitura vale mesmo a pena.
Até breve.
(...)"É, pois, impossível ao indivíduo mutilar a sua própria natureza e encontrar qualquer razão para viver exterior a essa mesma natureza; porque a razão de viver e a vontade de viver mais não são, em qualquer ser, a sua própria essência, enquanto esta exclui de si mesma tudo o que a nega. Em vão procuraremos desejar qualquer coisa que nos seja exterior e a que chamenos a felicidade, o bem ou a virtude: ninguém deseja ser feliz, agir bem, viver segundo a virtude, sem desejar ao mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em acto. Antes de desejar qualquer coisa, desejo ser."(....)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

A Salvação de Wang-Fô












“Sem deixar de pintar, Wang-Fô disse-lhe docemente:

- Julgava-te morto.

- Estando você vivo, disse Ling cheio de respeito, como é que eu poderia ter morrido?

E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia-se na água, de maneira que Ling parecia navegar no interior duma gruta.

As tranças dos cortesãos submersos ondulavam à superfície como cobras, e a cabeça do Imperador flutuava como um lótus.

- Repara, meu discípulo, disse Wang-Fô melancolicamente. Estes infelizes vão morrer, se é que não morreram já. Nunca supus que no mar houvesse tanta água que pudesse afogar um imperador. Poderemos fazer ainda alguma coisa?

- Não te preocupes, Mestre, murmurou o discípulo. Não tarda que eles estejam de novo em seco, sem mesmo se lembrarem de terem molhado as mangas. Só o Imperador é que há-de guardar no coração um pouco do amargor do mar. Gente como esta não foi feita para se perder dentro dum quadro.

E acrescentou:

- O mar é belo, o vento favorável, as aves marinhas andam a fazer os ninhos. Vamos embora, Mestre, para o lado de lá das ondas.

- Vamos, disse o velho pintor.”



Bonita, esta trama que se estabelece entre a pintura e a vida, entre a obra e a vida.

Marguerite Yourcenar: como um céu estrelado numa noite de luar.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

É tão bom ter dias assim!

A semana passada valeu mesmo a pena. Por várias razões, vou destacar aquela que mais me marcou e surpreendeu. Numa altura em que se fala de tantas coisas negativas, assinalo uma situação de enorme esperança nos jovens que passam despercebidos "às estatísticas" como referiu a amiga Júlia, no post referente à «pastora poetisa».

Uma adolescente de 14/15 anos, com o ar mais simpático do planeta, apareceu no balcão de atendimento desta biblioteca, esfuziante com o livro de Saramago «Memorial do Convento» como se trouxesse consigo o maior dos tesouros. E de repente, o tempo parou, porque aquela menina/mulher assim o quis, e eu que andava tão longe fiquei silenciosamente a reparar naquela «criatura» que fisicamente não inspiraria nenhum olhar especial, mas que fez questão de marcar posição com o seu entusiasmo «Saramagosense» e nós que ali estávamos crescemos também de entusiasmo.
Como boa leitora, fez questão de salientar, com a autoridade própria dos bons leitores, a demora exagerada de um outro utilizador na entrega do livro que tanto desejava ler.
E como não poderia deixar de ser, este livro que ela tanto desejava:-já é a segunda vez que aqui venho! - era o «Intermitências da Morte». Até aposto que se Saramago tivesse a honra de presenciar esta cena, depressa esqueceria o episódio Sousa Lara.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Um elogio ao Silêncio dos Livros nas palavras de Walter Benjamin


Para quem ainda não conhece, gostaria de vos mostrar este lugar da blogosfera que se chama O Silêncio dos Livros e que considero uma obra de arte. Este nome cai-lhe bem porque o coleccionador não escreve, oculta-se para que melhor vejamos imagens que escandalosamente se dirigem a nós. Ao Miguel, um parágrafo de Rua de Sentido Único de Walter Benjamin.

“Criança Desordenada. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta apanhada é já para ela o início de uma colecção, e tudo quanto possui forma para ela uma única colecção. Nela, esta paixão mostra o seu verdadeiro rosto, o agudo olhar índio que, nos antiquários, investigadores, bibliómanos, continua a arder, se bem que apenas turvo e maníaco. Mas entra na vida, transforma-se em caçador. Caça os espíritos cujo rasto pressente nas coisas; entre espíritos e coisas, passam-se anos durante os quais o seu campo de visão permanece livre de pessoas. Nela, as coisas passam-se como nos sonhos: não conhece nada que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu encontro, esbarram com ela. Os seus anos de nómada são horas na floresta do sonho. É de lá que arrasta a sua presa até casa, para a limpar, a fixar e desencantar. As suas gavetas têm de se transformar em arsenal e jardim zoológico, museu criminal e cripta. Arrumar seria destruir uma construção repleta de castanhas eriçadas de espinhos que são clavas, papéis de estanho que são um tesouro de pratas, paralelepípedos de madeira que são ataúdes, cactos que são tótemes, e tostões de cobre que são escudos. No armário das roupas da mãe, na biblioteca do pai, já há muito que a criança ajuda, ao passo que no próprio campo, a criança ainda continua a ser o hóspede inconstante e aguerrido.”

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Sensação libertária

Hoje aprendi que a relevância que damos às coisas depende do esforço mental que lhe dedicamos, no momento ou numa conjuntura anterior... neste momento, a moda dita a componente social, que absorve o "eu", e eu estou cansado. Regresso à liberdade da poesia, na pena de Pessoa.

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

 

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E só sentes o que sentes.

 

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

                                                               Fernando Pessoa – 1931

O que nos prende é também o que nos liberta…

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A nossa voz em bits na voz de Mário de Sá-Carneiro

A MINHA ALMA fugiu pela Torre Eiffel acima,
-A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões
-Fugiu, mas foi apanhada pela antena da TSF
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas...
(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma)!...

Agosto de 1915

Um outro livro...


Metamorfose de Kafka

Para mim este é o melhor conto de Kafka. A irrealidade do cenário levada ao domínio da fantasia, cheio de perspectivas alegóricas tornam-no delicioso. O mundo de Kafka é singular assim como a sua obra. A fantasia entomológica em que se transforma Gregor, personagem principal desta história, obriga-o a ficar prisioneiro por necessidade (fugir ao mundo, ao seu quotidiano insuportável), e espectador atónito da rotina familiar. Uma família grotesca que afasta Gregor, isolando-o na sua condição de insecto.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Inquietante obsessão

Todos os livros são histórias contadas por mentes que decidem partilhar com os outros uma parte do seu mundo, o qual produz conhecimento que molda a nossa vida e a nossa compreensão dos outros, porque ler é também viver uma aventura num mundo diferente mas no qual são visíveis similaridades com a nossa cosmovisão.

É-me difícil escolher um livro para colocar na estante verde, o gosto pelas histórias é um reflexo da evolução pessoal, num período específico, mas decidi escolher um em particular. Há alguns anos, vivia eu em Guimarães, quando o Óscar, um café situado perto do centro histórico, resolveu disponibilizar livros e revistas que poderiam ser consultados pelos clientes enquanto bebiam uma bica. Agradado com tal ideia, rapidamente me dirigi à estante à procura de um livro. De início parecia demasiado grande para ser lido meia hora por dia, enquanto o café arrefecia, mas, Dostoievsky era um nome conhecido, apesar da ignorância que na altura manifestava em relação à obra do autor. O Idiota parecia um nome um pouco rude, no entanto, algo apelativo naquela altura da minha vida. Depois de ultrapassada a dificuldade com os nomes das personagens deixei-me imergir no enredo, de tal forma que por vezes me esquecia das horas. Muitas vezes esperei, até ficar só eu e o livro, mas era difícil conjugar a disponibilidade para estar no café, até que uma vez, ao chegar à estante, reparei que o livro não estava no lugar habitual… depois de uma vista geral pelas mesas descobri-o… estava nas mãos de uma senhora com o cabelo grisalho e de olhar simpático! Nem queria acreditar, agora ainda tinha que partilhá-lo… terminei o café e senti-me despido, faltava-me algo, o que é que eu podia fazer… caminhei durante meia hora, parei na livraria e lá estava ele, não havia desculpa, agora podia tê-lo só para mim e o tempo que eu quisesse.

Os retratos que o autor faz dos personagens chegam a ser tão intensos que quase conseguimos imaginar a sua forma! Contemplei os delírios de Mychkine, a sua procura pelo lado negro da vida até à queda na escuridão. Que triste… que lindo… que bom! E por fim, repousei.

Livros que nos salvam



Cada mês uma de nós ganha rodas e visita aldeias destas terras. Desta vez fui eu a contemplada. Também nós temos o privilégio de contar com uma das carrinhas doadas em tempos pela Fundação Calouste Gulbenkian. Quem viveu sempre nas cidades, onde quase sempre existe uma biblioteca, não terá talvez esta experiência, de ver chegar uma carrinha com livros à sua porta. Para quem a espera, esses livros agem como uma prenda.
Numa aldeia de Trás-os-Montes, uma pastora escreve versos. Vem à carrinha buscar livros. Espere um bocadinho que vou buscar, diz-me. Aparece, daí a pouco com um livrinho na mão, Poemas de Amor e Sofrimento. Empresta-mo. Que depois lho mande no próximo mês. Agradeço e até à próxima.

Quando penso no que será das bibliotecas itinerantes quando se avariarem os seus carros, sobe-me uma onda de tristeza, pela suspeita de que raramente se comprarão outros para substituir os antigos.
O que pode um livro fazer por uma vida?
Pode um livro salvar-nos, reabrindo a ferida original num momento precioso, sarando outras, arrancando-nos ao quotidiano e envolvendo-nos numa aura de esperança, ou dilacerando-nos, revolvendo a semente que estava em nós à espera de emergir.
Isso que podem os livros fazer pelas vidas das pessoas, não fica escrito nas estatísticas que servem de inspiração a orçamentos de estado. Deveria ser possível dizer assim: este livro salvou-me! E isso contar para uma estatística qualquer importante! Talvez assim, investindo em livros, se pudesse investir um pouco menos em anti-depressivos. Às vezes nem damos conta, como quando alguém nos toca ao de leve no ombro. Voltamo-nos para ver e já somos outros.
Deixo-vos um excerto de um livro pelo qual fui salva há muitos anos, numa outra vida. Todo o texto é belo e intenso e apetece-me, muitas vezes, continuar a copiá-lo durante vários parágrafos. O livro chama-se Os Cadernos de Malte Laurids Brigge do poeta Rainer Maria Rilke.

“Esta doença não tem particularidades determinadas, toma as particularidades daqueles que ataca. Com uma segurança de sonâmbulo, arranca de cada um o seu mais profundo perigo que parecia já passado, e põe-no de novo diante dele, muito perto, na hora mais próxima. Homens de outrora, nos tempos da escola, tentaram o vício sem amparo cujos confidentes enganados são as pobres mãos duras dos rapazes, surpreendem-se de novo na sua prática; ou então é uma doença, que venceram como crianças, que neles recomeça; ou um hábito perdido que reaparece, uma certa maneira hesitante de voltar a cabeça, que há anos lhes era próprio. E com o que vem ergue-se todo um tecido confuso de lembranças desgarradas que se prende como algas húmidas a uma coisa submersa. Vidas, de que nunca se teria sabido, erguem-se e misturam-se àquilo que realmente existiu, e expulsam um passado que se julgava conhecer: pois naquilo que vem subindo há uma força nova e repousada, mas aquilo que sempre existiu está cansado do muito lembrar.”

quarta-feira, 13 de maio de 2009

AGUALUSA, José Eduardo


A primeira vez que tive contacto com a escrita de Agualusa foi quando li a sua narrativa epistolar Nação Crioula. Engraçado, porque quando classifico documentos, muitas vezes leio apenas o fundamental para os ordenar nas estantes (quando é literatura, pois não tenho que os indexar). Fico atenta ao género literário, e quando o autor/escritor é desconhecido faço sempre uma pesquisa biográfica, tal como aconteceu a primeira vez que li o nome de José Eduardo Agualusa.
A escrita de Agualusa é clara e franca, é por isso que gosto dos seus livros. Nação Crioula, remeteu-me uma vez mais, para os meus interesses, porque quando ando embrenhada nalgum assunto, este aparece-me espelhado nas mais variadas situações ao longo do período exploratório. Nessa altura, andava a ler a correspondência do Capitão João Sarmento Pimentel e achei piada à coincidência.
A escravatura que o escritor aborda, não me provocou aquela indignação que geralmente me vem das entranhas, porque foi passada para a narrativa com a naturalidade de quem tem conhecimento da realidade, e que já a quietou na história do seu interior, como algo que acontece nos manuais escolares, tornando tudo muito mais longínquo.
Depois, vem a descrição daquele povo que é também o escritor, a beleza do ser humano transmitida através da sua cultura, um grito de desespero, uma paixão forte e um acto de um homem corajoso.
Esta semana, o nome de Agualusa, tem vindo a aparecer em vários sítios e foi por isso que resolvi falar deste livro, porque me veio novamente à memória, o escritor e o livro. Primeiro a entrevista na Ler, o pedido de licença de Francisco José Viegas para o sucedido, como quem diz: - Eu avisei por isso escusam de criticar!- justificando-se por entrevistar um colaborador da revista. Depois na blogosfera, uma admiradora dos atributos físicos do escritor, que cultiva aquele ar de Dom Quixote (mas um bocadinho a fingir), e até aposto, que se fosse mulher ia ser difícil gerir estes dois atributos.
Boas Leituras

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A presença do Papa em Israel, com a natural profusão dos media em notícias e comentários, fez-me recordar um livro que li da nossa biblioteca, há poucos meses.
Esse livro é uma conferência de Gunter Grass e intitula-se "Escrever depois de Auschwitz".
Aqui, este nobel da literatura, disserta acerca de como uma flor pode nascer onde tudo é cinza.
O mundo tornou-se cinza depois do Holocausto para toda a humanidade, incrédula da capacidade de horror, personificada pelos alemães.
Fazer nascer uma flor onde na razão só há lugar para a culpa e recriminação, na personificação dos poetas alemães, é a grande questão deste autor, que explica a capacidade de olhar o mundo apesar de tudo com a sensibilidade de um artista, como o verdadeiro triunfo da humanidade contra a barbarie.
Este é um livro que trata da superação da culpa, não por qualquer explicação racional do horror praticado, mas pela chama de humanismo e beleza capaz de florescer em qualquer homem.
Este livro levanta questões interessantes da actualidade e da vida comum, na forma como olhamos os outros.
Na verdade, para mim parece-me tão natural não perdoar no sentido de marcar uma posição perante a realidade pessoal, como admitir que um erro grosseiro contra nós particularmente, não define além do nosso contexto alguém que o praticou, o que liberta qualquer homem de um sentimento de vingança.
Por outro lado, apesar de a experiência nos dizer que geralmente as pessoas são reincidentes nos seus comportamentos, o exemplo dos poetas alemães do pós-guerra, serve-nos de mote à esperança, o que é particularmente importante em relação a pessoas estigmatizadas socialmente, como reclusos, toxidependentes, prostitutas, e um sem número de contextos sociais que invariavelmente excluímos do nosso círculo de convivência, perpetuando a exclusão social de muitas pessoas.
Este é um livro muito interessante de ler, que nos leva a questões importantes da nossa vida quotidiana e perspectiva social.
Aqui fica a sugestão!

A propósito de um livro de André Kertész














Buenos Aires (man reading while walking), July 10, 1962
André Kertész, On Reading



Semear na Neve é um conjunto de estudos sobre Walter Benjamin, escritos por Filomena Molder, compilados com dois que o não são propriamente, como é o caso de Sobre on Reading de André Kertész, que é um estudo sobre a ideia de leitura.
Filomena Molder é uma autora que não me canso de ler.

“Havendo uma suspensão do fluxo intencional da experiência, a irrupção dos afectos e das imagens sonhadas encontra o espírito no estado mais propício de abandono, alheamento, que é uma forma elevada de concentração: o leitor não é tanto aquele que vê, quanto aquele que a vidência guia, esquecido da sua própria visibilidade. Ao riso e ao choro, e ao seu cortejo, nascidos da leitura, não há idade que seja alheia: haverá alguma idade que lhe seja mais favorável? O acto de ler, a aprendizagem da leitura é um acto de infância por absoluto, por isso mesmo parecem os velhos que lêem tão perto de regressar a um ponto onde toda a infância se acolhe, e os adultos tomados pela leitura deixam transparecer, intocáveis, todos os indícios desse lugar recôndito, oculto em todas as ocasiões. Na verdade, a dificuldade de um adulto ou de um velho aprender a ler procede da vertigem de não poderem regressar a um mundo de lembranças, para o qual a infância está desde sempre preparada: um sonho sem comparações, tal como a língua materna. Aquele que já perdeu a infância não pode resgatar esse sonho do aprender incomparável, do aprender sem analogia, esse endureceu, está armado, defendido pela espessura de toda a espécie de repetições, suspeitas, deduções, lamentos e falsos improvisos, que constituem o lote de qualquer vida composta de muitos anos, para quem toda a vivência é um derivado. Na infância a leitura encarna essa descoberta do que não se passou em lugar nenhum, nem em tempo nenhum, isso que para Novalis era o único verdadeiro. Não é outro o sentido da experiência visível ou antecipável no rosto, nos ombros, nas mãos, nos atacadores dos sapatos, nos braços, nos cabelos, de todos aqueles que aparecem nestas fotografias, andados à procura de uma coisa que deixaram guardada num quarto que já foi deles.”



Há uns dias chegou um leitor ao balcão da biblioteca, trazia consigo os livros que tinha levado. Desculpou-se dizendo que lhe faltava um, que não o trazia, tinha estado a ler Aquele Livro sem parar, nem tinha conseguido comer. Falava com uma voz emocionada e desenhou-se-me imediatamente um sorriso no coração.
Gostaria que todos os dias fossem assim.
Quis saber o que leu, esperei impacientemente que o devolvesse.


As vidas das pessoas: não sabemos o que nelas acontece. E no entanto sentimo-nos uns aos outros se o quisermos. Mostramo-nos um pouco mais quando ali colocamos um livro, Aquele Livro. Tocamo-nos uns aos outros. As bibliotecas vivas que somos abrem-se em leque e dão-se a conhecer para que outras integrem em si os Nossos Livros.


A estante verde que guardamos: como dizer segredos silenciosamente.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Eu sou aquela utente da Biblioteca Municipal Sarmento Pimentel completamente inconsequente para alguém que faça do rigor uma regra para a sua vida.
Para mim, ir à biblioteca, é um prazer que procuro por razões espirituais; muitas vezes vou à biblioteca para procurar uma obra que me cative, outras por questões de amizade já que mantenho um bom relacionamento com muitas das pessoas que aí trabalham, outras ainda para e tão somente, respirar a tranquilidade que me inspira o amontoado de perspectivas e ideias estruturado nas estantes da biblioteca.
Entre as centenas de livros que já me passaram pelas mãos, através do empréstimo na Biblioteca Sarmento Pimentel, é-me difícil destacar uma.
Aliás, confesso que grande parte desses mesmos livros eu não cheguei a ler!
São livros que vou consultando, outros lendo na diagonal e ainda outros pelos quais vou suspirando pelo momento em que seja capaz de os compreender, pelo meu apaixonado desejo de dominar assuntos , que para já, ainda são demasiado complexos.
Posso dizer, sem qualquer impressão de vergonha, que mais que uma leitora, sou uma "namoradeira" de livros, pelos quais tenho uma grande paixão.
Mas, para compor a estante verde e dar o ar da minha graça a este novo espaço da nossa biblioteca, escolhi o livro " A matemática de Pitágoras a Newton", por ser uma obra de divulgação da matemática, acessível até mesmo a um adolescente, sendo muitas vezes original na forma como expõe algumas matérias.
Na impossibilidade de eleger um livro ou um escritor que sejam marcantes na minha vida, deambulo caoticamente por obras que me apaixonam e influenciam a minha perspectiva de vida, experiencias essas que vou partilhar neste espaço, que, de tão aberto, tem espaço para minhas considerações, cujo único valor é o do amor pelos livros.

domingo, 3 de maio de 2009

O meu Livro, o meu Escritor




Como leitora e consumidora exaustiva de livros, de letras, de recenções literárias, com cerca de 30 anos de leituras, com períodos de interrupção, devido a algumas decepções literárias e imposições de leituras, que me afastaram dos livros durante algum tempo.
Regressei, após o período de adolescência e aqui estou eu, depois de um percurso de altos e baixos, a escrever sobre meus gostos literários. Como tenho que eleger um livro, para esta biblioteca pessoal e partilhá-lo nesta estante verde, optei pelo Dom de Vladimir Nabokov, por várias razões: é um livro brilhante, que nos prepara para ser muito mais exigentes com os outros escritores, porque Nabokov, tem esse Dom, o de nos fazer pensar, o de nos fazer voltar a página, chegando sempre à conclusão, que Nabokov, gostava de brincar com os seus leitores, de os fazer desesperar com a sua narrativa complexa, e depois, dava entrevistas maravilhosas, a que respondia por escrito, baralhando todas as minhas conclusões optimista. Nabokov, era um Homem poderoso, que assombra a minha vida de tal forma, que muitas vezes penso, tal como o historiador amigo de Calvino.
Transcrições:
(Nabokov, 2004, p. 189) "Fedor tivera tempo para guardar apenas os cobertores e os lençóis do sofá-cama antes de chegar um explicando, o filho de um dentista emigrado, um jovem pálido e gordo de óculos de aros grossos e caneta na bolsa do peito. Frequentando um liceu de Berlim, o coitado do rapaz estava tão embebido nos costumes locais que mesmo em inglês dava os mesmos erros impossíveis de erradicar em qualquer alemão de cabeça de alfinete. Por exemplo, força nenhuma deste mundo poderia impedi-lo de utilizar o pretérito composto em vez do pretérito simples, e isto dava a cada uma das suas actividades acidentais do dia anterior uma espécie de permanência idiota. Utilizava com uma obstinação semelhante o also (também) inglês da mesma maneira que o also (assim) alemão e ao vencer a espinhosa terminação da palavra clothes (roupa), invariavelmente acrescentava uma supérflua sílaba sibilante (clothes-zes) como se derrapasse depois de vencer um obstáculo. Ao mesmo tempo, exprimia-se bastante livremente em inglês e queria a ajuda dum explicador apenas porque queria ter a nota mais alta no exame final. Era presumido, discursivo, obtuso e duma ignorância tipicamente alemã; isto é, tratava com cepticismo tudo o que não conhecia. Firmemente convencido de que o lado humorístico das coisas fora há muito resolvido no lugar que lhe era próprio (a última página dum seminário ilustrado berlinense), nunca ria, ou limitava-se a um risinho silencioso de condescendência. A única coisa que quase o conseguia divertir eram histórias sobre operações engenhosas. Toda a sua filosofia de vida se reduzia a uma simples preposição: o homem pobre é infeliz, o homem rico é feliz. Esta felicidade legalizada era alegremente construída com acompanhamento de música de dança de primeira qualidade a jorrar de diversos artigos de luxo técnico".

quarta-feira, 29 de abril de 2009

A Académica de Nuno Canavez




Temos sorte de poder ter ao nosso alcance, as Bibliografias sobre Trás-os-Montes e Alto Douro, que Nuno Canavez vai construindo com mestria, carinho e generosidade com que trata e descreve a sua Terra, dando à biblioteca de Mirandela milhares de livros, fazendo-o com um sentido de devoção que caracteriza todas as sua atitudes.
Para este Senhor fica aqui uma mensagem especial: "Palavras sábias que nos salvam de toda a tristeza: Herdar a grandeza de alma, a coragem, o sentido estético, a elevação moral e intelectual de alguém que amamos e nos amou, é sermos herdeiros da maior herança que se pode dar e receber". (Nabokov)

terça-feira, 28 de abril de 2009

As Memórias do Capitão


João Sarmento Pimentel(1888-1987) escreveu um livro de memórias notável.
Homem aguerrido, lutou até ao fim da sua longa vida, pelos ideais a que sempre se manteve fiel.
Este livro é um retrato da sua personalidade, da sua época, da sua infância, adolescência e idade adulta. Enfrentou desde cedo, a hipocrisia social de uma sociedade monárquica, que tentou combater. Mais tarde, depois da implantação da republica, veio a desilusão, o Estado Novo e o seu exílio prolongado no Brasil. Neste país irmão, nunca deixou de estar comprometido com a sua pátria, mantendo sempre uma profícua correspondência com muitos intelectuais da sua época. No seu livro de memórias, pode compreender-se o porquê desta rectidão de carácter que o Capitão João Sarmento Pimentel fez questão de descrever prestando assim uma homenagem a sua mãe «...foi a bondade, o carinho, a energia, as altas virtudes morais daquela santa Mãe portuguesa, que deram firmeza de carácter, e verdadeira noção de honradez, aos três moços seus filhos. Eles foram homens do seu tempo e, como seus maiores amantes e defensores da liberdade, correram o mundo e lutaram pela sua vida e na defesa da Pátria.» A mãe de Sarmento Pimentel, não apoiava os ideais republicanos de seu filho, mas deixou-o prosseguir a sua caminhada...

Existe uma biblioteca individual numa outra biblioteca

Algures numa Biblioteca Municipal, existe uma outra biblioteca pessoal (apesar de poder ser frequentada por todos) só um de cada vez pode ler os livros que esta contém...
Acreditem que a pouco e pouco, vamos construir a biblioteca de Borges.