quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
O velho que lia romances de amor
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Leite Derramado
"É O TAL NEGÓCIO, me arrancam da cama, me passam para a maca, ninguém quer saber dos meus incômodos. Nem bem acordei, não me escovaram os dentes, estou com a cara amassada e a barba por fazer, e com este péssimo aspecto me fazem desfilar sob a luz fria do corredor que é um verdadeiro purgatório, com um monte de gente estropiada pelo chão, fora os vagabundos que vêm ali a fim de ver desgraça. Por isso puxo o lençol e cubro meu outrora belo rosto, que logo tornam a expor para não parecer que estou morto, porque causa má impressão, ou é vexatório para maqueiro transportar defunto. Depois tem o elevador, onde todos olham sem cerimônia para a minha cara, em vez de olhar para o chão, o tecto, o mostrador de andares, porque também não custa nada olhar para o traste".
Chico Buarque
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Uma longa viagem com António Lobo Antunes
É disto que se trata, uma longa viagem espiritual. Foi o que senti, quando li este livro, em forma de entrevista. António Lobo Antunes mostra-se, quase nu, sem pudor em se afirmar como pessoa.
António Lobo Antunes é de uma dignidade transcendente, não teve receio em se mostrar tal como é, e ao fazê-lo provocou-me um sentimento inexplicável de vergonha, porque afinal de contas aquele Homem que há muito coloquei num pedestal, está a despir-se para os leitores, e eu, ao lê-lo achei que não merecia.
sábado, 12 de dezembro de 2009
Amantes e Inimigos
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
A Casa Dos Espíritos, Isabel Allende
A primeira edição de "A casa dos Espiritos" saiu à venda em 1982, e catapultou Isabel Allende de uma maneira espetacular à fama. Esta foi a sua primeira obra.
O relato transporta-nos à história do Chile e conta-nos as aventuras e desventuras, amores e ódios, crenças e diferenças políticas de três gerações diferentes da família Trueba. Para além de abordar diferentes visões políticas, aborda também temas bastante controversos da altura e que ainda hoje despertam interesse.
As personagens são profundas e criativas, descritas pela escritora com um toque anedótico e ao mesmo tempo focando rasgos menos bons destas, mas que sem eles seria impossível transmitir o sentimento da época.
O relato em si é envolvente e cativante desde a primeira página. Isabel escreve de uma maneira muito fluida e com a pontada de sarcasmo característico dos Sul-Americanos.
Diferentes aventuras e muitas emoções, guerras pessoais e a guerra civil preencherão a sua leitura, e não poderá largar o livro até à última página. Eu pessoalmente, adorei. Desfrute!!
sexta-feira, 24 de julho de 2009
Livros
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.
Os livros são objectos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou o que é muito pior por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.
Caetano Veloso
segunda-feira, 13 de julho de 2009
Imagina que podemos controlar a vida através de um comando remoto universal.Tudo começa quando Michael se apercebe dos vários comandos existentes em casa para desempenhar uma função distinta, ou seja, um comando para a televisão, um para a agaragem , outro para o ventilador, para o carrinho de brinquedo.Atrapalhado com tantos botões e vendo a facilidade dos filhos de manusear e distinguir tantos, sai para uma loja de conveniência à procura de um comando universal.Percebo nesse filme o quanto estamos atrelados ás tecnologias, utilizando-as de maneira útil ou não.O filme é um sonho vivido pelo personagem.O mesmo ao possuir algo que poderia utilizar para controlar a sua própria vida , os seus familiares, amigos e até o cão, ficou extremamente feliz.Ele podia fazer tudo, fazer parar as pessoas, diminuir o volume da voz,adiantar os acontecimentos. Para resumir e não contar tudo, chega um momento que ele percebe que o importante é viver cada fase da vida, aceitar as situações chatas, conviver com as diferenças entre os familiares e colegas e que apesar de vivermos uma vida agitada sem tempo para os bons momentos, o que na realidade vale a pena, é viver o agora,o hoje, disfrutar de cada minuto com as pessoas que amamos.Até logo!!!
sexta-feira, 10 de julho de 2009
Alguns estados da luz
El Soplón (El Greco)
Egoísta não é, esta revista. Com grande pena minha, nesta biblioteca existem apenas meia dúzia de exemplares. Além do cuidado na escolha de textos e imagem, um papel excelente. Adoro estes papéis tão agradáveis ao toque, apetece folheá-los. A minha preferida é a número 18, de Março de 2004, dedicada à Luz. Mais luz, toda a matéria é combustível, meninos de luz, luzia e este texto de António Mega Ferreira.
«Vou supor que estão familiarizados com as propriedades da luz em circunstâncias do dia-a-dia, tais como: a luz viaja em linha recta; desvia-se quando entra na água; quando é reflectida por uma superfície como um espelho, o ângulo sob o qual a luz atinge a superfície é igual ao ângulo sob o qual a deixa; pode ser separada em cores; vêem-se cores lindas numa poça de lama quando esta tem um pouco de óleo; uma lente foca a luz; etc. Servir-me-ei destes fenómenos a que estão habituados para ilustrar o verdadeiro comportamento estranho da luz...»
quarta-feira, 8 de julho de 2009
And let the young Lambs bound
As to the tabor's sound!
We in thought will join your throng,
Ye that pipe and ye that play,
Ye that through your hearts to-day
Feel the gladness of the May!
What though the radiance which was once so bright
Be now for ever taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.
Intimations of Immortality From Recollections of Erly Childhood, de William Wordsworth
É diferente. E depois?
António Orlando Rodríguez, através da sua escrita desmistifica a diferença, quando no seu romance «Chiquita», empreendeu a tarefa de escrever a história verdadeira de Espiridiona Cenda, uma liliputiana atrevida com a vida, uma sedutora, que se tornou numa celebridade dos teatros de vaudeville.
«Ela é muito...demasiado...pequenina - apressou-se a responder Minga, ao reparar que a sua patroa perdera novamente a fala.
O negro Congo deu uma gargalhada e retorquiu que no mundo, para que fosse mundo, tinha de haver de tudo: pessoas grandes, pessoas pequeninas e pessoas ainda mais pequeninas...»
terça-feira, 7 de julho de 2009
Sobre a interpretação
Ao debruçarmo-nos sobre o visível podemos recolher a imagem que nos foi exposta na palavra de outrem. No entanto, a análise da imagem é subjectiva e distinta! A adaptação interpretativa apenas se processa pela pertença a uma comunidade linguístico-cultural ou pela inferência resultante das premissas anteriormente conhecidas durante o processo de comunicação. Na escrita é relativamente fácil recordarmo-nos de um livro que começamos a ler e que pela dificuldade de reconhecimento do implícito, perdemos a vontade de ler. Essa é uma característica que o leitor deve ultrapassar pela vontade de conhecer, pois as inferências que vai fazendo ao longo do texto serão importantes para a compreensão do início do livro. Alguns autores chamam-lhes pontos de referência, que nos colocam na vivência dos personagens e no estilo da narrativa.
A interpretação que se faz de um texto dá-nos a noção de conhecermos algo de novo que é difícil de partilhar por ser tão próprio, tão… secreto. E quando se fala sobre essa vivência “percebe-se que todas as bibliotecas íntimas têm uma zona de intersecção. Então é outra coisa: é o amor que nasce da leitura. Amo-te, gostamos dos mesmos livros, gostamos um do outro no livro” (Barthes e Mauriés, em Enciclopédia Eunaudi).
segunda-feira, 6 de julho de 2009
Um tesouro
O Estúdio de Alberto Giacometti de Jean Genet foi reeditado em 1999 pela Assírio e Alvim e é o número 3 numa colecção que se chama Alfinete. Muito apropriado. Os mais saudosos ficarão contentes quando, ao abrir o livro encontrarem as palavras de Al Berto. Outras palavras ainda: solidão das coisas, ferida original, refúgio dos seres, movimento, esqueleto, nudez dos objectos.
«Tive medo quando bruscamente apareceu Osíris – o nicho cortado à face, rente à parede – sob luz verde. E foram os meus olhos os primeiros a aperceber-se? Não. Antes tinham sido ombros e a nuca, esmagada por uma mão, ou massa , obrigando-me ao mergulho dos milénios egípcios, a curvar-me mentalmente, e até encolher-me, diante dessa pequena estátua com sorriso e olhar severos. Estava ali um deus. O deus do inexorável. (Claro que me refiro à estátua de Osíris em pé, na cripta do Louvre.) Tive medo porque sem sombra de dúvida tinha ali um deus. Certas estátuas de Giacometti provocam em mim emoções muito próximas deste terror, e idêntico fascínio.
Mas despertam um curioso sentimento: são-me familiares, cruzam-se comigo na rua. Ora elas vêm do fim dos tempos, do princípio de tudo, e não cessam de vir ou recuar com soberana imobilidade. Se os meus olhos tentam aprisioná-las, aproximar-se, elas – sem fúria nem cólera nem ira, apenas pela distância entre nós, que eu ainda não notara, de tal modo reduzida e escassa, a ponto de as julgar ali mesmo – afastam-se a perder de vista: desdobra-se subitamente a distância. Para onde vão? Embora a sua imagem continue visível, onde estão elas?»
quinta-feira, 2 de julho de 2009
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Indubitavelmente Borges
«Continuo a fazer de contas que não sou cego, continuo a comprar livros, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tal volumes, escritos numa letra gótica que sou incapaz de ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, todavia, o livro estava ali. Senti como que a gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens».
Excerto retirado do livro "Borges Oral", que faz parte de um texto inserido numa colectânea de conferências proferidas na Universidade de Belgrano. Borges e Nabokov, ensinaram literatura na universidade e faziam-no com espirito de devoção e entrega porque a vida deles era a literatura. Tenho impressão, que os alunos eram meros ecos das suas palavras, e que o diálogo dentro das aulas era feito entre os escritores e as obras que seleccionavam .
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Nesta terra aprendi a gostar de cerejas
Terra Quente o Fim do Milénio: se folhearmos este livro vemos:
Gestos do quotidiano. Carneiros, galinhas, perdizes, cerejas. Naturezas mortas. A expressão natureza morta não é muito feliz, a natureza fala connosco.
Mulheres que depenam galinhas com a mesma naturalidade com que penteiam meninas, a ferocidade e a ternura aliam-se na obra de Graça Morais.
Anjos preparam-se para desfilar na procissão, alguém lhes preparou os cabelos. Aquele carvão sobre papel, serão mesmo dois, ou é apenas um anjo que se vê de perfil?
Uma mulher descasca uma batata enquanto a criança é engolida por um urso.
Aquela mulher, que nos observa de costas, olha-nos como se o fizesse de frente. Olhos nos nossos olhos. O gancho deixou cair alguns cabelos, estava concentrada noutra coisa.
Este livro é um estudo da formação do mundo. Pintura, desenho, excertos dos seus diários, acompanhados pelo texto de António Carlos Carvalho e fotografias de Roberto Santandreu.
Um cartão de visita da Terra Quente.
sexta-feira, 19 de junho de 2009
E agora, Sofia? Onde está a linha?
A Sofia é uma pessoa que me lembra vagamente alguém que já conheci.
Aquela leitora quase tímida, quase adolescente, quase com medo de existir, pode agora receber o adjectivo aventureira.
A Sofia saiu do ninho e está finalmente onde queria estar. Vai deixar saudades.
«Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? - pergunta Kublai Kan.
- A ponte não é sustida por esta ou aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
Polo responde: - Sem pedras não há o arco.»
As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino
Grande Reportagem
Comprava-a religiosamente, sempre que saia, às Sextas – Feiras, e não era uma publicação barata (nem o podia ser). Fazia parte do meu ritual hedonista, sentar-me no Dom Pedro, um café no Porto, ao pé de casa, e folheava-a do princípio ao fim sem saltar páginas sorvendo-a gulosamente como fazem os apreciadores do bom café.
Tenho saudades de aprender muito, com o jornalismo de investigação, que teimou em debandar, e que estranhamente passou a ser o jornalismo dos crimes, da pedofilia do “antes e depois”.
Há dias numa viagem, relembrei a Grande Reportagem, através de um documentário que passava na TSF, sobre a extinção da baleia branca no Canadá, e senti de repente o mesmo entusiasmo, que agora me leva sempre que é possível, a sintonizar a TSF.
No entanto, não existe prazer comparável ao de folhear, mandando no nosso tempo, a informação em suporte papel.
quinta-feira, 18 de junho de 2009
Ecologia e Ideologia
terça-feira, 16 de junho de 2009
A Chuva Pasmada
terça-feira, 9 de junho de 2009
sábado, 6 de junho de 2009
Livros da Infância
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Ornamentos
O uso da palavra é uma arte, a arte do sonho, do sentimento, da emoção, da reconciliação… uma arte relegada para o romântico pela exaltação das emoções, pelo engano dos sentidos que promove uma onda inebriante e leva as massas a um êxtase ilusório... a formatação do sentir é por vezes tão forte que nos nega a interpretação acreditada nos próprios sentidos. E não será a procura da razão que peja os nossos sentidos e nos faz navegar num vazio temeroso na procura da inteligibilidade o que nos ludibria?
Ao lugar do “poético” apenas a ficção, e por isso leio, cavalgando numa odisseia quixotesca ou num qualquer mundo de Alice e estudo as razões da ausência desse lugar, que apesar da brisa de um vulto elegante, está ainda afastado da realidade vivencial. Pelo menos traria consigo o conceito de belo, de etéreo… a poesia, num dos conhecidos sonetos de Luís de Camões.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas da lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, emfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não muda já como soía*.
* usualmente
Luís Vaz de Camões (1595 pm)
A sociedade evolui, o sentimento é perene…
La Biblioteca de Babel
O universo de Borges sempre tão inacessível e tão apaixonante, tão longínquo e infinito, tão distante de nós, tão perto da vida.
Alberto Manguel, foi um dos muitos jovens, que leram em voz alta para Borges, sem se estabelecer uma forte relação pessoal: "Eu descobria um texto lendo-o em voz alta, enquanto Borges usava os ouvidos como outros leitores usavam os olhos para esquadrinhar uma página à procura de uma palavra, de uma frase, de um parágrafo que confirmassem um registo da memória. Durante a leitura, interrompia-me, fazendo comentários ao texto a fim de (penso eu) tomar notas mentais."
Segundo Manguel, mesmo que não significasse nada mais que um veículo de informação para Borges, sentia que o universo do escritor abafaria qualquer sentimento contraditório: "Eu sentia que era o único proprietário de uma edição cuidadosamente anotada, compilada para meu benefício exclusivo. Evidentemente que não o era; eu (como muitos outros) era apenas o seu caderno de apontamentos, um aide-mémoire de que o escritor cego necessitava para organizar as suas memórias".
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Dia de Pentecostes
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.
Somente sei que minha vida estremeceria, que
os braços sonâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de Junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês de primavera e a terra
baixa e magnífica.
Herberto Helder
A Colher na Boca
domingo, 31 de maio de 2009
Espinosa
quinta-feira, 28 de maio de 2009
A Salvação de Wang-Fô
“Sem deixar de pintar, Wang-Fô disse-lhe docemente:
- Julgava-te morto.
- Estando você vivo, disse Ling cheio de respeito, como é que eu poderia ter morrido?
E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia-se na água, de maneira que Ling parecia navegar no interior duma gruta.
As tranças dos cortesãos submersos ondulavam à superfície como cobras, e a cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
- Repara, meu discípulo, disse Wang-Fô melancolicamente. Estes infelizes vão morrer, se é que não morreram já. Nunca supus que no mar houvesse tanta água que pudesse afogar um imperador. Poderemos fazer ainda alguma coisa?
- Não te preocupes, Mestre, murmurou o discípulo. Não tarda que eles estejam de novo em seco, sem mesmo se lembrarem de terem molhado as mangas. Só o Imperador é que há-de guardar no coração um pouco do amargor do mar. Gente como esta não foi feita para se perder dentro dum quadro.
E acrescentou:
- O mar é belo, o vento favorável, as aves marinhas andam a fazer os ninhos. Vamos embora, Mestre, para o lado de lá das ondas.
- Vamos, disse o velho pintor.”
Bonita, esta trama que se estabelece entre a pintura e a vida, entre a obra e a vida.
Marguerite Yourcenar: como um céu estrelado numa noite de luar.
quarta-feira, 27 de maio de 2009
É tão bom ter dias assim!
Uma adolescente de 14/15 anos, com o ar mais simpático do planeta, apareceu no balcão de atendimento desta biblioteca, esfuziante com o livro de Saramago «Memorial do Convento» como se trouxesse consigo o maior dos tesouros. E de repente, o tempo parou, porque aquela menina/mulher assim o quis, e eu que andava tão longe fiquei silenciosamente a reparar naquela «criatura» que fisicamente não inspiraria nenhum olhar especial, mas que fez questão de marcar posição com o seu entusiasmo «Saramagosense» e nós que ali estávamos crescemos também de entusiasmo.
Como boa leitora, fez questão de salientar, com a autoridade própria dos bons leitores, a demora exagerada de um outro utilizador na entrega do livro que tanto desejava ler.
E como não poderia deixar de ser, este livro que ela tanto desejava:-já é a segunda vez que aqui venho! - era o «Intermitências da Morte». Até aposto que se Saramago tivesse a honra de presenciar esta cena, depressa esqueceria o episódio Sousa Lara.
quinta-feira, 21 de maio de 2009
Um elogio ao Silêncio dos Livros nas palavras de Walter Benjamin
“Criança Desordenada. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta apanhada é já para ela o início de uma colecção, e tudo quanto possui forma para ela uma única colecção. Nela, esta paixão mostra o seu verdadeiro rosto, o agudo olhar índio que, nos antiquários, investigadores, bibliómanos, continua a arder, se bem que apenas turvo e maníaco. Mas entra na vida, transforma-se em caçador. Caça os espíritos cujo rasto pressente nas coisas; entre espíritos e coisas, passam-se anos durante os quais o seu campo de visão permanece livre de pessoas. Nela, as coisas passam-se como nos sonhos: não conhece nada que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu encontro, esbarram com ela. Os seus anos de nómada são horas na floresta do sonho. É de lá que arrasta a sua presa até casa, para a limpar, a fixar e desencantar. As suas gavetas têm de se transformar em arsenal e jardim zoológico, museu criminal e cripta. Arrumar seria destruir uma construção repleta de castanhas eriçadas de espinhos que são clavas, papéis de estanho que são um tesouro de pratas, paralelepípedos de madeira que são ataúdes, cactos que são tótemes, e tostões de cobre que são escudos. No armário das roupas da mãe, na biblioteca do pai, já há muito que a criança ajuda, ao passo que no próprio campo, a criança ainda continua a ser o hóspede inconstante e aguerrido.”
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Sensação libertária
Hoje aprendi que a relevância que damos às coisas depende do esforço mental que lhe dedicamos, no momento ou numa conjuntura anterior... neste momento, a moda dita a componente social, que absorve o "eu", e eu estou cansado. Regresso à liberdade da poesia, na pena de Pessoa.
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E só sentes o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa – 1931
O que nos prende é também o que nos liberta…
segunda-feira, 18 de maio de 2009
A nossa voz em bits na voz de Mário de Sá-Carneiro
-A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões
-Fugiu, mas foi apanhada pela antena da TSF
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas...
(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma)!...
Agosto de 1915
Um outro livro...
Metamorfose de Kafka
Para mim este é o melhor conto de Kafka. A irrealidade do cenário levada ao domínio da fantasia, cheio de perspectivas alegóricas tornam-no delicioso. O mundo de Kafka é singular assim como a sua obra. A fantasia entomológica em que se transforma Gregor, personagem principal desta história, obriga-o a ficar prisioneiro por necessidade (fugir ao mundo, ao seu quotidiano insuportável), e espectador atónito da rotina familiar. Uma família grotesca que afasta Gregor, isolando-o na sua condição de insecto.
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Inquietante obsessão
Todos os livros são histórias contadas por mentes que decidem partilhar com os outros uma parte do seu mundo, o qual produz conhecimento que molda a nossa vida e a nossa compreensão dos outros, porque ler é também viver uma aventura num mundo diferente mas no qual são visíveis similaridades com a nossa cosmovisão.
É-me difícil escolher um livro para colocar na estante verde, o gosto pelas histórias é um reflexo da evolução pessoal, num período específico, mas decidi escolher um em particular. Há alguns anos, vivia eu em Guimarães, quando o Óscar, um café situado perto do centro histórico, resolveu disponibilizar livros e revistas que poderiam ser consultados pelos clientes enquanto bebiam uma bica. Agradado com tal ideia, rapidamente me dirigi à estante à procura de um livro. De início parecia demasiado grande para ser lido meia hora por dia, enquanto o café arrefecia, mas, Dostoievsky era um nome conhecido, apesar da ignorância que na altura manifestava em relação à obra do autor. O Idiota parecia um nome um pouco rude, no entanto, algo apelativo naquela altura da minha vida. Depois de ultrapassada a dificuldade com os nomes das personagens deixei-me imergir no enredo, de tal forma que por vezes me esquecia das horas. Muitas vezes esperei, até ficar só eu e o livro, mas era difícil conjugar a disponibilidade para estar no café, até que uma vez, ao chegar à estante, reparei que o livro não estava no lugar habitual… depois de uma vista geral pelas mesas descobri-o… estava nas mãos de uma senhora com o cabelo grisalho e de olhar simpático! Nem queria acreditar, agora ainda tinha que partilhá-lo… terminei o café e senti-me despido, faltava-me algo, o que é que eu podia fazer… caminhei durante meia hora, parei na livraria e lá estava ele, não havia desculpa, agora podia tê-lo só para mim e o tempo que eu quisesse.
Os retratos que o autor faz dos personagens chegam a ser tão intensos que quase conseguimos imaginar a sua forma! Contemplei os delírios de Mychkine, a sua procura pelo lado negro da vida até à queda na escuridão. Que triste… que lindo… que bom! E por fim, repousei.
Livros que nos salvam
Numa aldeia de Trás-os-Montes, uma pastora escreve versos. Vem à carrinha buscar livros. Espere um bocadinho que vou buscar, diz-me. Aparece, daí a pouco com um livrinho na mão, Poemas de Amor e Sofrimento. Empresta-mo. Que depois lho mande no próximo mês. Agradeço e até à próxima.
Quando penso no que será das bibliotecas itinerantes quando se avariarem os seus carros, sobe-me uma onda de tristeza, pela suspeita de que raramente se comprarão outros para substituir os antigos.
O que pode um livro fazer por uma vida?
Pode um livro salvar-nos, reabrindo a ferida original num momento precioso, sarando outras, arrancando-nos ao quotidiano e envolvendo-nos numa aura de esperança, ou dilacerando-nos, revolvendo a semente que estava em nós à espera de emergir.
Isso que podem os livros fazer pelas vidas das pessoas, não fica escrito nas estatísticas que servem de inspiração a orçamentos de estado. Deveria ser possível dizer assim: este livro salvou-me! E isso contar para uma estatística qualquer importante! Talvez assim, investindo em livros, se pudesse investir um pouco menos em anti-depressivos. Às vezes nem damos conta, como quando alguém nos toca ao de leve no ombro. Voltamo-nos para ver e já somos outros.
Deixo-vos um excerto de um livro pelo qual fui salva há muitos anos, numa outra vida. Todo o texto é belo e intenso e apetece-me, muitas vezes, continuar a copiá-lo durante vários parágrafos. O livro chama-se Os Cadernos de Malte Laurids Brigge do poeta Rainer Maria Rilke.
quarta-feira, 13 de maio de 2009
AGUALUSA, José Eduardo
A escrita de Agualusa é clara e franca, é por isso que gosto dos seus livros. Nação Crioula, remeteu-me uma vez mais, para os meus interesses, porque quando ando embrenhada nalgum assunto, este aparece-me espelhado nas mais variadas situações ao longo do período exploratório. Nessa altura, andava a ler a correspondência do Capitão João Sarmento Pimentel e achei piada à coincidência.
A escravatura que o escritor aborda, não me provocou aquela indignação que geralmente me vem das entranhas, porque foi passada para a narrativa com a naturalidade de quem tem conhecimento da realidade, e que já a quietou na história do seu interior, como algo que acontece nos manuais escolares, tornando tudo muito mais longínquo.
Depois, vem a descrição daquele povo que é também o escritor, a beleza do ser humano transmitida através da sua cultura, um grito de desespero, uma paixão forte e um acto de um homem corajoso.
Esta semana, o nome de Agualusa, tem vindo a aparecer em vários sítios e foi por isso que resolvi falar deste livro, porque me veio novamente à memória, o escritor e o livro. Primeiro a entrevista na Ler, o pedido de licença de Francisco José Viegas para o sucedido, como quem diz: - Eu avisei por isso escusam de criticar!- justificando-se por entrevistar um colaborador da revista. Depois na blogosfera, uma admiradora dos atributos físicos do escritor, que cultiva aquele ar de Dom Quixote (mas um bocadinho a fingir), e até aposto, que se fosse mulher ia ser difícil gerir estes dois atributos.
Boas Leituras
segunda-feira, 11 de maio de 2009
A propósito de um livro de André Kertész
André Kertész, On Reading
Quis saber o que leu, esperei impacientemente que o devolvesse.
As vidas das pessoas: não sabemos o que nelas acontece. E no entanto sentimo-nos uns aos outros se o quisermos. Mostramo-nos um pouco mais quando ali colocamos um livro, Aquele Livro. Tocamo-nos uns aos outros. As bibliotecas vivas que somos abrem-se em leque e dão-se a conhecer para que outras integrem em si os Nossos Livros.
A estante verde que guardamos: como dizer segredos silenciosamente.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
domingo, 3 de maio de 2009
O meu Livro, o meu Escritor
Regressei, após o período de adolescência e aqui estou eu, depois de um percurso de altos e baixos, a escrever sobre meus gostos literários. Como tenho que eleger um livro, para esta biblioteca pessoal e partilhá-lo nesta estante verde, optei pelo Dom de Vladimir Nabokov, por várias razões: é um livro brilhante, que nos prepara para ser muito mais exigentes com os outros escritores, porque Nabokov, tem esse Dom, o de nos fazer pensar, o de nos fazer voltar a página, chegando sempre à conclusão, que Nabokov, gostava de brincar com os seus leitores, de os fazer desesperar com a sua narrativa complexa, e depois, dava entrevistas maravilhosas, a que respondia por escrito, baralhando todas as minhas conclusões optimista. Nabokov, era um Homem poderoso, que assombra a minha vida de tal forma, que muitas vezes penso, tal como o historiador amigo de Calvino.
Transcrições:
(Nabokov, 2004, p. 189) "Fedor tivera tempo para guardar apenas os cobertores e os lençóis do sofá-cama antes de chegar um explicando, o filho de um dentista emigrado, um jovem pálido e gordo de óculos de aros grossos e caneta na bolsa do peito. Frequentando um liceu de Berlim, o coitado do rapaz estava tão embebido nos costumes locais que mesmo em inglês dava os mesmos erros impossíveis de erradicar em qualquer alemão de cabeça de alfinete. Por exemplo, força nenhuma deste mundo poderia impedi-lo de utilizar o pretérito composto em vez do pretérito simples, e isto dava a cada uma das suas actividades acidentais do dia anterior uma espécie de permanência idiota. Utilizava com uma obstinação semelhante o also (também) inglês da mesma maneira que o also (assim) alemão e ao vencer a espinhosa terminação da palavra clothes (roupa), invariavelmente acrescentava uma supérflua sílaba sibilante (clothes-zes) como se derrapasse depois de vencer um obstáculo. Ao mesmo tempo, exprimia-se bastante livremente em inglês e queria a ajuda dum explicador apenas porque queria ter a nota mais alta no exame final. Era presumido, discursivo, obtuso e duma ignorância tipicamente alemã; isto é, tratava com cepticismo tudo o que não conhecia. Firmemente convencido de que o lado humorístico das coisas fora há muito resolvido no lugar que lhe era próprio (a última página dum seminário ilustrado berlinense), nunca ria, ou limitava-se a um risinho silencioso de condescendência. A única coisa que quase o conseguia divertir eram histórias sobre operações engenhosas. Toda a sua filosofia de vida se reduzia a uma simples preposição: o homem pobre é infeliz, o homem rico é feliz. Esta felicidade legalizada era alegremente construída com acompanhamento de música de dança de primeira qualidade a jorrar de diversos artigos de luxo técnico".
quarta-feira, 29 de abril de 2009
A Académica de Nuno Canavez
Temos sorte de poder ter ao nosso alcance, as Bibliografias sobre Trás-os-Montes e Alto Douro, que Nuno Canavez vai construindo com mestria, carinho e generosidade com que trata e descreve a sua Terra, dando à biblioteca de Mirandela milhares de livros, fazendo-o com um sentido de devoção que caracteriza todas as sua atitudes.
Para este Senhor fica aqui uma mensagem especial: "Palavras sábias que nos salvam de toda a tristeza: Herdar a grandeza de alma, a coragem, o sentido estético, a elevação moral e intelectual de alguém que amamos e nos amou, é sermos herdeiros da maior herança que se pode dar e receber". (Nabokov)
terça-feira, 28 de abril de 2009
As Memórias do Capitão
Homem aguerrido, lutou até ao fim da sua longa vida, pelos ideais a que sempre se manteve fiel.
Este livro é um retrato da sua personalidade, da sua época, da sua infância, adolescência e idade adulta. Enfrentou desde cedo, a hipocrisia social de uma sociedade monárquica, que tentou combater. Mais tarde, depois da implantação da republica, veio a desilusão, o Estado Novo e o seu exílio prolongado no Brasil. Neste país irmão, nunca deixou de estar comprometido com a sua pátria, mantendo sempre uma profícua correspondência com muitos intelectuais da sua época. No seu livro de memórias, pode compreender-se o porquê desta rectidão de carácter que o Capitão João Sarmento Pimentel fez questão de descrever prestando assim uma homenagem a sua mãe «...foi a bondade, o carinho, a energia, as altas virtudes morais daquela santa Mãe portuguesa, que deram firmeza de carácter, e verdadeira noção de honradez, aos três moços seus filhos. Eles foram homens do seu tempo e, como seus maiores amantes e defensores da liberdade, correram o mundo e lutaram pela sua vida e na defesa da Pátria.» A mãe de Sarmento Pimentel, não apoiava os ideais republicanos de seu filho, mas deixou-o prosseguir a sua caminhada...