quinta-feira, 14 de maio de 2009

Livros que nos salvam



Cada mês uma de nós ganha rodas e visita aldeias destas terras. Desta vez fui eu a contemplada. Também nós temos o privilégio de contar com uma das carrinhas doadas em tempos pela Fundação Calouste Gulbenkian. Quem viveu sempre nas cidades, onde quase sempre existe uma biblioteca, não terá talvez esta experiência, de ver chegar uma carrinha com livros à sua porta. Para quem a espera, esses livros agem como uma prenda.
Numa aldeia de Trás-os-Montes, uma pastora escreve versos. Vem à carrinha buscar livros. Espere um bocadinho que vou buscar, diz-me. Aparece, daí a pouco com um livrinho na mão, Poemas de Amor e Sofrimento. Empresta-mo. Que depois lho mande no próximo mês. Agradeço e até à próxima.

Quando penso no que será das bibliotecas itinerantes quando se avariarem os seus carros, sobe-me uma onda de tristeza, pela suspeita de que raramente se comprarão outros para substituir os antigos.
O que pode um livro fazer por uma vida?
Pode um livro salvar-nos, reabrindo a ferida original num momento precioso, sarando outras, arrancando-nos ao quotidiano e envolvendo-nos numa aura de esperança, ou dilacerando-nos, revolvendo a semente que estava em nós à espera de emergir.
Isso que podem os livros fazer pelas vidas das pessoas, não fica escrito nas estatísticas que servem de inspiração a orçamentos de estado. Deveria ser possível dizer assim: este livro salvou-me! E isso contar para uma estatística qualquer importante! Talvez assim, investindo em livros, se pudesse investir um pouco menos em anti-depressivos. Às vezes nem damos conta, como quando alguém nos toca ao de leve no ombro. Voltamo-nos para ver e já somos outros.
Deixo-vos um excerto de um livro pelo qual fui salva há muitos anos, numa outra vida. Todo o texto é belo e intenso e apetece-me, muitas vezes, continuar a copiá-lo durante vários parágrafos. O livro chama-se Os Cadernos de Malte Laurids Brigge do poeta Rainer Maria Rilke.

“Esta doença não tem particularidades determinadas, toma as particularidades daqueles que ataca. Com uma segurança de sonâmbulo, arranca de cada um o seu mais profundo perigo que parecia já passado, e põe-no de novo diante dele, muito perto, na hora mais próxima. Homens de outrora, nos tempos da escola, tentaram o vício sem amparo cujos confidentes enganados são as pobres mãos duras dos rapazes, surpreendem-se de novo na sua prática; ou então é uma doença, que venceram como crianças, que neles recomeça; ou um hábito perdido que reaparece, uma certa maneira hesitante de voltar a cabeça, que há anos lhes era próprio. E com o que vem ergue-se todo um tecido confuso de lembranças desgarradas que se prende como algas húmidas a uma coisa submersa. Vidas, de que nunca se teria sabido, erguem-se e misturam-se àquilo que realmente existiu, e expulsam um passado que se julgava conhecer: pois naquilo que vem subindo há uma força nova e repousada, mas aquilo que sempre existiu está cansado do muito lembrar.”