O Espírito Desfaz a Ordem das Coisas
O espírito
aprendeu que a beleza nos faz bons, maus, estúpidos ou sedutores.
Disseca uma ovelha e um penitente e encontra em ambos humildade e
paciência. Analisa uma substância e descobre que, tomada em grandes
quantidades, pode ser um veneno, e em pequenas doses, um excitante. Sabe
que a mucosa dos lábios tem afinidades com a do intestino, mas também
sabe que a humildade desses lábios tem afinidades com a humildade de
tudo o que é sagrado. O espírito desfaz a ordem das coisas, dissolve-as e
volta a recompô-las de forma diferente. O bem e o mal, o que está em
cima e o que está em baixo não são para ele noções de um relativismo
céptico, mas termos de uma função, valores que dependem do contexto em
que se encontram. Os séculos ensinaram-lhe que os vícios se podem
transformar em virtudes e as virtudes em vícios, e conclui que, no
essencial, só por inépcia se não consegue fazer de um criminoso um homem
útil no tempo de uma vida. Não reconhece nada como lícito ou ilícito,
porque tudo pode ter uma qualidade graças à qual um dia participará de
um novo e grande sistema. Odeia secretamente como a morte tudo aquilo
que se apresenta como se fosse definitivo, os grandes ideais, as grandes
leis e a sua pequena marca fossilizada, o carácter acomodado. Nada para
ele é fixo, nenhum eu, nenhuma ordem; como os nossos conhecimentos
podem mudar todos os dias, não acredita em vínculos, e tudo tem o valor
que tem até ao próximo acto da criação, como um rosto para o qual
falamos enquanto ele se vai transformando com as palavras. O espírito é,
assim, o grande artista da contingência, mas ele próprio não se deixa
apanhar, e quase somos levados a crer que a ruína é a única coisa que
resta da sua acção. Todo o progresso é um ganho no particular e um
desmembramento no todo; é um aumento de poder que desemboca num
progressivo aumento de impotência, e contra isto não há nada a fazer.
Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
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