sexta-feira, 26 de março de 2010
Poema Pouco Original do Medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
sim
a ratos
ALEXANDRE O´NEILL
Poesias Completas
"O vinho inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo, nas riquezas minerais escondidas: uma taça de Samos bebida ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contrário, absorvida por uma noite de Inverno, num estado de fadiga que permite sentir imediatamente na concavidade do diafragma o seu derramamento quente..., a sua segura e escaldante dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada, por vezes forte de mais para uma cabeça humana; já a não acho tão pura quando sai das adegas numeradas de Roma, e o pedantismo dos grandes conhecedores de bebidas impacienta-me. Mais piedosamente ainda, a água bebida na concha da mão ou mesmo na nascente faz correr em nós o mais secreto sal da terra e a chuva do céu. Mas a própria água é uma delícia que o doente que eu sou só pode gozar com sobriedade. Não importa: mesmo na agonia e misturada com a amargura das últimas poções, esforçar-me-ei por sentir a sua fresca insipidez nos meus lábios"
Marguerite Yourcenar
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