quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O velho que lia romances de amor


"-É verdade que sabes ler, compadre?

- Alguma coisa.

- E que estás a ler?

- Um romance. Mas cala-te. Se falas a chama mexe-se e mexem-se-me as letras. O outro afastou-se para não estorvar, mas era tal a atenção que o Velho prestava ao livro que não suportou ficar à margem.
- De que é que trata?
- Do amor.
Perante a resposta do velho, o outro aproximou-se com renovado interesse.
- Não me lixes. Com fêmeas ricas, das que fervem?O Velho fechou o livro num repente fazendo tremer a chama do candeeiro.
- Não.Trata-se do outro amor. Do que dói."


Luis Sepúlveda

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Leite Derramado


"É O TAL NEGÓCIO, me arrancam da cama, me passam para a maca, ninguém quer saber dos meus incômodos. Nem bem acordei, não me escovaram os dentes, estou com a cara amassada e a barba por fazer, e com este péssimo aspecto me fazem desfilar sob a luz fria do corredor que é um verdadeiro purgatório, com um monte de gente estropiada pelo chão, fora os vagabundos que vêm ali a fim de ver desgraça. Por isso puxo o lençol e cubro meu outrora belo rosto, que logo tornam a expor para não parecer que estou morto, porque causa má impressão, ou é vexatório para maqueiro transportar defunto. Depois tem o elevador, onde todos olham sem cerimônia para a minha cara, em vez de olhar para o chão, o tecto, o mostrador de andares, porque também não custa nada olhar para o traste".
Chico Buarque