“Sem deixar de pintar, Wang-Fô disse-lhe docemente:
- Julgava-te morto.
- Estando você vivo, disse Ling cheio de respeito, como é que eu poderia ter morrido?
E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia-se na água, de maneira que Ling parecia navegar no interior duma gruta.
As tranças dos cortesãos submersos ondulavam à superfície como cobras, e a cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
- Repara, meu discípulo, disse Wang-Fô melancolicamente. Estes infelizes vão morrer, se é que não morreram já. Nunca supus que no mar houvesse tanta água que pudesse afogar um imperador. Poderemos fazer ainda alguma coisa?
- Não te preocupes, Mestre, murmurou o discípulo. Não tarda que eles estejam de novo em seco, sem mesmo se lembrarem de terem molhado as mangas. Só o Imperador é que há-de guardar no coração um pouco do amargor do mar. Gente como esta não foi feita para se perder dentro dum quadro.
E acrescentou:
- O mar é belo, o vento favorável, as aves marinhas andam a fazer os ninhos. Vamos embora, Mestre, para o lado de lá das ondas.
- Vamos, disse o velho pintor.”
Bonita, esta trama que se estabelece entre a pintura e a vida, entre a obra e a vida.
Marguerite Yourcenar: como um céu estrelado numa noite de luar.