quinta-feira, 14 de maio de 2009

Inquietante obsessão

Todos os livros são histórias contadas por mentes que decidem partilhar com os outros uma parte do seu mundo, o qual produz conhecimento que molda a nossa vida e a nossa compreensão dos outros, porque ler é também viver uma aventura num mundo diferente mas no qual são visíveis similaridades com a nossa cosmovisão.

É-me difícil escolher um livro para colocar na estante verde, o gosto pelas histórias é um reflexo da evolução pessoal, num período específico, mas decidi escolher um em particular. Há alguns anos, vivia eu em Guimarães, quando o Óscar, um café situado perto do centro histórico, resolveu disponibilizar livros e revistas que poderiam ser consultados pelos clientes enquanto bebiam uma bica. Agradado com tal ideia, rapidamente me dirigi à estante à procura de um livro. De início parecia demasiado grande para ser lido meia hora por dia, enquanto o café arrefecia, mas, Dostoievsky era um nome conhecido, apesar da ignorância que na altura manifestava em relação à obra do autor. O Idiota parecia um nome um pouco rude, no entanto, algo apelativo naquela altura da minha vida. Depois de ultrapassada a dificuldade com os nomes das personagens deixei-me imergir no enredo, de tal forma que por vezes me esquecia das horas. Muitas vezes esperei, até ficar só eu e o livro, mas era difícil conjugar a disponibilidade para estar no café, até que uma vez, ao chegar à estante, reparei que o livro não estava no lugar habitual… depois de uma vista geral pelas mesas descobri-o… estava nas mãos de uma senhora com o cabelo grisalho e de olhar simpático! Nem queria acreditar, agora ainda tinha que partilhá-lo… terminei o café e senti-me despido, faltava-me algo, o que é que eu podia fazer… caminhei durante meia hora, parei na livraria e lá estava ele, não havia desculpa, agora podia tê-lo só para mim e o tempo que eu quisesse.

Os retratos que o autor faz dos personagens chegam a ser tão intensos que quase conseguimos imaginar a sua forma! Contemplei os delírios de Mychkine, a sua procura pelo lado negro da vida até à queda na escuridão. Que triste… que lindo… que bom! E por fim, repousei.

Livros que nos salvam



Cada mês uma de nós ganha rodas e visita aldeias destas terras. Desta vez fui eu a contemplada. Também nós temos o privilégio de contar com uma das carrinhas doadas em tempos pela Fundação Calouste Gulbenkian. Quem viveu sempre nas cidades, onde quase sempre existe uma biblioteca, não terá talvez esta experiência, de ver chegar uma carrinha com livros à sua porta. Para quem a espera, esses livros agem como uma prenda.
Numa aldeia de Trás-os-Montes, uma pastora escreve versos. Vem à carrinha buscar livros. Espere um bocadinho que vou buscar, diz-me. Aparece, daí a pouco com um livrinho na mão, Poemas de Amor e Sofrimento. Empresta-mo. Que depois lho mande no próximo mês. Agradeço e até à próxima.

Quando penso no que será das bibliotecas itinerantes quando se avariarem os seus carros, sobe-me uma onda de tristeza, pela suspeita de que raramente se comprarão outros para substituir os antigos.
O que pode um livro fazer por uma vida?
Pode um livro salvar-nos, reabrindo a ferida original num momento precioso, sarando outras, arrancando-nos ao quotidiano e envolvendo-nos numa aura de esperança, ou dilacerando-nos, revolvendo a semente que estava em nós à espera de emergir.
Isso que podem os livros fazer pelas vidas das pessoas, não fica escrito nas estatísticas que servem de inspiração a orçamentos de estado. Deveria ser possível dizer assim: este livro salvou-me! E isso contar para uma estatística qualquer importante! Talvez assim, investindo em livros, se pudesse investir um pouco menos em anti-depressivos. Às vezes nem damos conta, como quando alguém nos toca ao de leve no ombro. Voltamo-nos para ver e já somos outros.
Deixo-vos um excerto de um livro pelo qual fui salva há muitos anos, numa outra vida. Todo o texto é belo e intenso e apetece-me, muitas vezes, continuar a copiá-lo durante vários parágrafos. O livro chama-se Os Cadernos de Malte Laurids Brigge do poeta Rainer Maria Rilke.

“Esta doença não tem particularidades determinadas, toma as particularidades daqueles que ataca. Com uma segurança de sonâmbulo, arranca de cada um o seu mais profundo perigo que parecia já passado, e põe-no de novo diante dele, muito perto, na hora mais próxima. Homens de outrora, nos tempos da escola, tentaram o vício sem amparo cujos confidentes enganados são as pobres mãos duras dos rapazes, surpreendem-se de novo na sua prática; ou então é uma doença, que venceram como crianças, que neles recomeça; ou um hábito perdido que reaparece, uma certa maneira hesitante de voltar a cabeça, que há anos lhes era próprio. E com o que vem ergue-se todo um tecido confuso de lembranças desgarradas que se prende como algas húmidas a uma coisa submersa. Vidas, de que nunca se teria sabido, erguem-se e misturam-se àquilo que realmente existiu, e expulsam um passado que se julgava conhecer: pois naquilo que vem subindo há uma força nova e repousada, mas aquilo que sempre existiu está cansado do muito lembrar.”

quarta-feira, 13 de maio de 2009

AGUALUSA, José Eduardo


A primeira vez que tive contacto com a escrita de Agualusa foi quando li a sua narrativa epistolar Nação Crioula. Engraçado, porque quando classifico documentos, muitas vezes leio apenas o fundamental para os ordenar nas estantes (quando é literatura, pois não tenho que os indexar). Fico atenta ao género literário, e quando o autor/escritor é desconhecido faço sempre uma pesquisa biográfica, tal como aconteceu a primeira vez que li o nome de José Eduardo Agualusa.
A escrita de Agualusa é clara e franca, é por isso que gosto dos seus livros. Nação Crioula, remeteu-me uma vez mais, para os meus interesses, porque quando ando embrenhada nalgum assunto, este aparece-me espelhado nas mais variadas situações ao longo do período exploratório. Nessa altura, andava a ler a correspondência do Capitão João Sarmento Pimentel e achei piada à coincidência.
A escravatura que o escritor aborda, não me provocou aquela indignação que geralmente me vem das entranhas, porque foi passada para a narrativa com a naturalidade de quem tem conhecimento da realidade, e que já a quietou na história do seu interior, como algo que acontece nos manuais escolares, tornando tudo muito mais longínquo.
Depois, vem a descrição daquele povo que é também o escritor, a beleza do ser humano transmitida através da sua cultura, um grito de desespero, uma paixão forte e um acto de um homem corajoso.
Esta semana, o nome de Agualusa, tem vindo a aparecer em vários sítios e foi por isso que resolvi falar deste livro, porque me veio novamente à memória, o escritor e o livro. Primeiro a entrevista na Ler, o pedido de licença de Francisco José Viegas para o sucedido, como quem diz: - Eu avisei por isso escusam de criticar!- justificando-se por entrevistar um colaborador da revista. Depois na blogosfera, uma admiradora dos atributos físicos do escritor, que cultiva aquele ar de Dom Quixote (mas um bocadinho a fingir), e até aposto, que se fosse mulher ia ser difícil gerir estes dois atributos.
Boas Leituras

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A presença do Papa em Israel, com a natural profusão dos media em notícias e comentários, fez-me recordar um livro que li da nossa biblioteca, há poucos meses.
Esse livro é uma conferência de Gunter Grass e intitula-se "Escrever depois de Auschwitz".
Aqui, este nobel da literatura, disserta acerca de como uma flor pode nascer onde tudo é cinza.
O mundo tornou-se cinza depois do Holocausto para toda a humanidade, incrédula da capacidade de horror, personificada pelos alemães.
Fazer nascer uma flor onde na razão só há lugar para a culpa e recriminação, na personificação dos poetas alemães, é a grande questão deste autor, que explica a capacidade de olhar o mundo apesar de tudo com a sensibilidade de um artista, como o verdadeiro triunfo da humanidade contra a barbarie.
Este é um livro que trata da superação da culpa, não por qualquer explicação racional do horror praticado, mas pela chama de humanismo e beleza capaz de florescer em qualquer homem.
Este livro levanta questões interessantes da actualidade e da vida comum, na forma como olhamos os outros.
Na verdade, para mim parece-me tão natural não perdoar no sentido de marcar uma posição perante a realidade pessoal, como admitir que um erro grosseiro contra nós particularmente, não define além do nosso contexto alguém que o praticou, o que liberta qualquer homem de um sentimento de vingança.
Por outro lado, apesar de a experiência nos dizer que geralmente as pessoas são reincidentes nos seus comportamentos, o exemplo dos poetas alemães do pós-guerra, serve-nos de mote à esperança, o que é particularmente importante em relação a pessoas estigmatizadas socialmente, como reclusos, toxidependentes, prostitutas, e um sem número de contextos sociais que invariavelmente excluímos do nosso círculo de convivência, perpetuando a exclusão social de muitas pessoas.
Este é um livro muito interessante de ler, que nos leva a questões importantes da nossa vida quotidiana e perspectiva social.
Aqui fica a sugestão!

A propósito de um livro de André Kertész














Buenos Aires (man reading while walking), July 10, 1962
André Kertész, On Reading



Semear na Neve é um conjunto de estudos sobre Walter Benjamin, escritos por Filomena Molder, compilados com dois que o não são propriamente, como é o caso de Sobre on Reading de André Kertész, que é um estudo sobre a ideia de leitura.
Filomena Molder é uma autora que não me canso de ler.

“Havendo uma suspensão do fluxo intencional da experiência, a irrupção dos afectos e das imagens sonhadas encontra o espírito no estado mais propício de abandono, alheamento, que é uma forma elevada de concentração: o leitor não é tanto aquele que vê, quanto aquele que a vidência guia, esquecido da sua própria visibilidade. Ao riso e ao choro, e ao seu cortejo, nascidos da leitura, não há idade que seja alheia: haverá alguma idade que lhe seja mais favorável? O acto de ler, a aprendizagem da leitura é um acto de infância por absoluto, por isso mesmo parecem os velhos que lêem tão perto de regressar a um ponto onde toda a infância se acolhe, e os adultos tomados pela leitura deixam transparecer, intocáveis, todos os indícios desse lugar recôndito, oculto em todas as ocasiões. Na verdade, a dificuldade de um adulto ou de um velho aprender a ler procede da vertigem de não poderem regressar a um mundo de lembranças, para o qual a infância está desde sempre preparada: um sonho sem comparações, tal como a língua materna. Aquele que já perdeu a infância não pode resgatar esse sonho do aprender incomparável, do aprender sem analogia, esse endureceu, está armado, defendido pela espessura de toda a espécie de repetições, suspeitas, deduções, lamentos e falsos improvisos, que constituem o lote de qualquer vida composta de muitos anos, para quem toda a vivência é um derivado. Na infância a leitura encarna essa descoberta do que não se passou em lugar nenhum, nem em tempo nenhum, isso que para Novalis era o único verdadeiro. Não é outro o sentido da experiência visível ou antecipável no rosto, nos ombros, nas mãos, nos atacadores dos sapatos, nos braços, nos cabelos, de todos aqueles que aparecem nestas fotografias, andados à procura de uma coisa que deixaram guardada num quarto que já foi deles.”



Há uns dias chegou um leitor ao balcão da biblioteca, trazia consigo os livros que tinha levado. Desculpou-se dizendo que lhe faltava um, que não o trazia, tinha estado a ler Aquele Livro sem parar, nem tinha conseguido comer. Falava com uma voz emocionada e desenhou-se-me imediatamente um sorriso no coração.
Gostaria que todos os dias fossem assim.
Quis saber o que leu, esperei impacientemente que o devolvesse.


As vidas das pessoas: não sabemos o que nelas acontece. E no entanto sentimo-nos uns aos outros se o quisermos. Mostramo-nos um pouco mais quando ali colocamos um livro, Aquele Livro. Tocamo-nos uns aos outros. As bibliotecas vivas que somos abrem-se em leque e dão-se a conhecer para que outras integrem em si os Nossos Livros.


A estante verde que guardamos: como dizer segredos silenciosamente.